Conheci tipos que viveram muito – os
que nunca souberam nada da própria vida.
Nuno Júdice, Requiem por muitos maios
fotografia de eurico portugal
são assim os olhares de outono,
azuis como o pijama às riscas
onde bordas
ponto por ponto
o rasto da noite
enquanto as demais estações
arriscam a sobrevivência
com a porta fechada
os dedos estendidos sobre a boca
e a canção que entoa acordes de loucura.
houve tempos em que preferias o verão
[disseste]
e a respiração colorida do sol
na roleta-russa dos lábios
ou nas engrenagens do coração
recordo ainda o inverno
a trajar meias de lã até aos joelhos
e a cada arrepio
o corpo projetava sombras de licor
na cal, nos lençóis, no sexo em flor
da primavera perdi o tempo
o compasso de um mundo que compunhas com o nome
e todos os cristais com que remexias o silêncio
[sabíamos lá que a rota das aves se extingue
no orvalho de cada manhã?].
nunca soube muito de ciência
porque a verdade acena-me
desde um lugar transparente
alguns centímetros abaixo da cabeça,
lugar onde a cegueira mascara a escuridão
e as palavras que ardem em candeias
explodem antes de se tornarem
perfeitas, irrecusáveis ou mesmo vivas.
e é sempre tarde depois que morremos
porque as coisas são sempre outra coisa
e a beleza de outrora é somente lágrima
escorrida em jarra sem flores
onde agora procuramos equilibrar a voz
arrancada às costas de um mapa.
como os olhares de outono, afinal:
luzes suspensas nos peitoris das janelas
a existir pelo lado de fora da noite;
os teus olhos e os meus:
transfusão de imagens
esquecidas dentro dela.