sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

um poema que é só teu

O amor é ter medo e querer morrer

José Luís Peixoto, A Criança em Ruínas


fotografia de eurico portugal


é ainda inverno,
o vento a descruzar janelas
avançando rente à enxurrada
dos trilhos da carne.
abrigamo-nos debaixo da pele,
escondemos os escombros dos enganos
no desconforto na cal
e sob ruas cobertas de búzios que
esqueceram a geografia do mar.

– de que cor é o medo? – perguntas.

o silêncio é rasgado pela linguagem
da terra húmida
onde até as glicínias arrefecem.

– de que cor é o medo? – tornas com os lábios trémulos.

rostos, lugares, árvores de fruto e oceanos
habitam-nos
mas agora na mudez
de vozes distantes.
os olhos pousam na luz parda do fim de tarde
enquanto mordiscas o lábio incandescente
como querendo entender a linguagem
cor de linho e duas gotas de sangue
do medo.
aconchegas o silêncio nas tuas mãos,
abres e fechas os olhos,
e regressas à estrada das frases
antes de te entregares à estrada dos homens:

– não quero um tempo em que apenas eu
envelheça.

para trás da tua ausência
o rasto de um perfume manso
cai através do corpo dentro do tempo
dentro da idade
dentro de mim.
por companhia
o vento e a tempestade
das palavras que não se repetem
mas ressoam eternas no charco da memória:

de que cor é o medo?

chamo a voz como a dois versos
e aliso os cabelos negros da verdade:

– só tu sabes que este poema é teu
neste tempo já futuro
ainda mais cedo do que nós.

a voz engole a boca
e lá fora continua a chover dentro
dos corpos.


sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

diário breve da noite e da quase-loucura

[…] mesmo que já não tenha ideia dos tempos que já passaram
das pessoas que já não estão
e das almas sem corpo que nos pedem todos os dias baixinho para resistir
resistir mesmo sem forças
sem futuro
e sem lembrar o passado

João Negreiros, Ode ao filho da puta




fotografia de pedro ferreira



ergo o cigarro com a língua alta
à procura de silêncios, de
queimar as pontas
das cicatrizes e de não deixar
que a noite desate a doer.
é de sal e frio toda a linguagem que
nos ensinou a ver
e os olhos,
em crepitante loucura,
afundam-se na ceifa
como se o amanhã fosse todos os nossos dias.
levanto-me e,
arrastando o casulo, perco os passos
entre o balcão e a pista de dança
guiado por uma garrafa que me prende
ao teto de nuvens
às pétalas de açucena e a tudo
o que estremece na estação passada dos corpos.
até a canção da jukebox é antiga
como as erosões da pele
quase muda
porque me não equilibro já nas palavras nem na voz.
há um copo vazio que desafia a atenção,
entorna-se debaixo de mim
roubando-me a coragem para
enterrar o poeta e
voltar a amanhecer.

uma ave acorda
nos arbustos de metal
segreda-me ao ouvido telhados de nunca-alcançar
e eu, sem saber
como varrer o hálito para debaixo da noite,
estendo as patas, agito as asas e levanto
voo

à procura de outras mortes.


sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

galeria II: tempo-quase


[fotografia de eurico portugal]

tempo de não voltar a mentir
labirintos
o sexo escondido pelos bares
e os dias em que chovíamos um no outro

tempo de não voltar a mentir
porque é tempo de fingir que quase não existes




[fotografia de eurico portugal]

lugares onde as pedras também amam
e o tempo é quase sempre



[fotografia de eurico portugal]

todo o tempo que baixa os olhos
apaga as linhas do rosto
e morre

é o tempo de tornar a viver



[fotografia de eurico portugal]

tudo o que não recordo altera o passado



sábado, 5 de janeiro de 2013

no café > o pedido > chá azul

Aquele café além é acolhedor. Não tomas nada?
Um chá fazia bem à tosse. Perguntaste E disseste.
Sim, um chá calhava bem. Estava mesmo a apetecer-me.
Parece que adivinhei. Disseste. E aí sorri eu.
Tomámos chá e de imediato fizemos planos de vida
Que correram mal, imediatamente mal.

Ana Salomé, Lume


fotografia de eurico portugal


um ponto cravado no escuro
imobilizando o frio,
três casarios contíguos
e a respiração de quem não se atreve a enfrentar
a noite.
lá dentro
tudo ruge tudo vibra tudo alcança
por entre vultos com rosto
que perdem retinas no azul da alma
de cada objeto.
sobre as cabeças,
um céu de espuma
a amaciar os dias que ali se sustêm.

estendo as mãos para o livro
que me agarra os dedos
segredando o esquecimento
de todas as mortes ateadas
pela poeira dos cigarros –
a mão queimada
as flores quase abandonadas
o livro,
não lhe leio um autor
adivinho-lhe o título,
a história, essa, sei-a
de cor.

a vida abeira-se de mim:
uma criança que passa em furiosa correria
dois velhos explicando como nasce a morte
e um beijo asfixiado na menstruação da mentira.
com avental de renda,
a vida cada vez mais próxima:
– o que vai ser?
– uma chávena de chá
azul
como os pássaros e a voz
a adormecer no coração das palavras,
uma chávena de chá
azul
muito quente
a queimar a porta
e o seu caminho,
uma chávena de chá
azul
a fumegar no rosto
duas linhas de água infinitas,
uma chávena de chá
azul
a adivinhar-me feliz nesta estação
em que permaneço deitado
sem roupa
a tiritar
no inaudível canto da noite
que nem cheguei a conhecer.

ergo os olhos,
o chá acabara de chegar:
incolor, frio, fogo negro
como todos os pedidos impossíveis.

sobra o silêncio a envelhecer no ar.