sexta-feira, 22 de março de 2013

o verbo e os estilhaços do silêncio


Dói-me o intervalo que há entre o que pensais e o que dizeis… […]
Não sei que é isto mas é o que sinto…
Fernando Pessoa, O Marinheiro


fotografia de eurico portugal


perguntas-me o que sou capaz
de ainda reconhecer.

desvio-me da pergunta
como quem tropeça,
evito os estilhaços
e volto-lhe as costas
[toda a linguagem queima quando
desferida por lábios
a afiar as lâminas dos deuses].

para trás, a certeza de
de uma distância percorrida
devagar por nunca saber o que respira entre
as palavras e o horizonte que as
delimita,
dois ou três livros sublinhados
pelo olhar,
tardes esquecidas que vieram comer
a luz,
copos a vigiar a noite
e um silêncio, como os cabelos,
estendido por fora da gola
e de alguns flocos de frio tombados.
de tudo te escondi:
álcool, poemas, palavras azuis, chão,
cães e ruas a farejar
nomes
um espelho vazio e alguns
[mais do que desejei]
agora não, depois sim, talvez mais logo,
de tudo fugi e só a quase nada
deixei debicar migalhas
de certezas.

que é feito do tecido com poros
escancarados
à espera que a noite selasse palavras
em dissolução lenta, rasteira,
quase invisível na mudez
de mim?

escondemo-nos num silêncio
que talvez nunca tenha sido
nosso,
tantas vidas esquecidas
e o olhar de costas para a porta que teima
em permanecer fechada…

ambos dissemos já o silêncio. e agora repetimo-lo
com todas as palavras.


sexta-feira, 15 de março de 2013

Melodia lenta para os dias no regaço da sombra


Morrer é quando há um espaço a mais na mesa afastando as cadeiras para disfarçar.

Não é meia noite quem quer, António Lobo Antunes


fotografia de eurico portugal


Caem, diretas na sua mão, as bagas de marfim dessa planta sem nome que se conhece por trocar raízes com os pés. Nunca se perguntou se estava vivo, por saber que há respostas que moram não nas palavras que se inventam, mas nas sensações escorrentes, gota a gota, nos lábios, a obliquar para o canto da boca, sem aviso ou permissão, enrolando a língua em tons rubros e anis.
– já não tenho a vida toda – pensou – e os meus ouvidos reconhecem, agora, as melodias do frio que se dependuram nas varandas.
Sabe dos dias que segura com a firmeza dos dedos como sabe de tantos outros que, por serem maiores do que os bolsos, balançam, sem músculo ou gládio, na corda que abeira a calçada do esquecimento – livros e notas manuscritas conservando, ainda, a roupa em desalinho como um perfume atirado sobre a geografia do corpo; uns quantos discos que sabia de cor, a garrafa de vinho entornada e o cheiro vago que permanece depois; por fim, as paredes brancas, vazias, enquanto a porta batia, com estrondo, logo atrás dela (quanto de si se atirava para dentro do lenço?).
De todas as vezes, o mecanismo incompleto do silêncio na perfeita organização de uma quase morte. E o momento de reabrir os olhos e colher as bagas de marfim da tal planta que se conhece por trocar raízes com os pés:
– Em paisagens humanas, importa não envelhecer com medo nos olhos errados.

sexta-feira, 8 de março de 2013

depois [ou o tempo-advérbio na linguagem e na boca]


A vida espreita-nos sempre
Fernando Pessoa, O marinheiro


 fotografia de eurico portugal


depois,
a terra ergueu-se sobre
o tempo
– continua a chover-nos mas
o que é a pele senão
coleção incompleta de recordações
como o derradeiro olhar ou o leite de
figo a assanhar a boca?

depois,
o tempo deitou-se sobre
a ferida
– dói sempre tanto esse
intervalo entre a vulva e
a casca,
entre o vazio das pernas
e o fôlego do ventre

depois,
a ferida singrou ventos e linha
sobre mundos costurados
– tudo é demasiado na falência de
mãos impossíveis
enquanto os cabelos
tingem futuros com vendas
nos olhos,
tudo é demasiado no movimento
vazante

e nós… nós,
cada vez mais anónimos,
nós acaso sabemos
alguma coisa?

sexta-feira, 1 de março de 2013

pedras soltas na calçada da vida adentro [I]

I - Batom vermelho

E a luz oblíqua a apontar-lhe a mesa e a cadeira. É o instinto do aroma que segue, naquele café, deitado no fim de tarde, onde esquecera os pontos cardeais e as coordenadas com que os homens iludem os passos. À sua espera, Teresa, ela que lhe segredara os milagres do corpo e as verdades que nenhum outro homem almeja conhecer senão pelas sete línguas de sete bocas da mulher. Havia, agora, mundos que começava a colecionar, mais seus do que o bilhete de identidade ou a impressão digital registada num qualquer formulário de polícia. Através do vidro, a silhueta de anjo, obliquando a chávena de café que encostava aos lábios. O tempo parecia ter parado e, na sua imobilidade, um arrepio na pele, um batimento taquicardíaco e o desejo de ser porcelana e partitura musical.


fotografia de eurico portugal [republicada]




II - A-linhamento

E o fio a prumo, a escancarar a boca para as águas, oferecendo, no anzol, a lascívia e a morte numa migalha de pão por troca com a carne, toda a carne.
Falo de ti, peixe-peixe, ou de mim, peixe-homem?


fotografia de eurico portugal