quarta-feira, 30 de outubro de 2013

o inexprimível universo de nadas



a sua sombra chegava sempre primeiro do que a minha aos desníveis da terra

António Lobo Antunes, Não é meia noite quem quer



fotografia de jorge pimenta



desatar a boca:
ser sonâmbulo
escutar a noite e o som
do fogo
naquele verão desabitado
de lábios e beijos
esquecidos

desatar a boca:
singrar urgências
sangrar lábios
gumes alagados de saliva
na espuma arável
de tantas mortalidades
em explosão lenta

desatar a boca:
arder excessos torrenciais
em sulcos de rebentação
nos lírios de entre as pernas

desatar a boca:
um morrer de nada um morrer de tudo
no gozo fértil da humidade do teu
orvalho

desatar a boca
e o bolor
de alguns inexprimíveis
recomeços.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

pedras da calçada da vida adentro [V]



Se não me amas, por que me avisas assim da dor?

Rosário Pedreira



fotografia de jorge pimenta: ícaro-homem


I. memória de um nome

é ele, o nome
a pontuar vigílias
nos lençóis
em cada regresso ao rumor
da noite:

é no silêncio
que disperso fantasmas
e toda a cal da sepultura.


II. carpe diem

o vinho
o amor
e toda a verdade:

só a vida pode desejar descansar
da vida.


III. poesia

poesia:
fome e alimento
osso ferida ressurreição
abelhas a acoplar o sangue
candeia cega
e alumbramento
olhos que veem para além das imagens

e eu aqui, moribundo,
sem saber como fecundá-la
com as minhas palavras.


IV. troia

entre o sangue de
páris
e o veneno de
helena:
o inexprimível universo
e cada um dos seus
nadas.


sábado, 19 de outubro de 2013

nota sequencial para versos de outrora



O destino que se cumpra,
se o destino for
Eu apenas quero a flor
de uma última penumbra,
onde a sombra,
entendo eu,
é apenas o lugar
onde a luz
pode declarar-se
verdadeiramente.

Wilson Caritta Lopes


fotografia de jorge pimenta


Vestido de preto, entrou no quarto de hotel. Dirigiu-se até uma bancada sem acender as luzes. Do lado direito das cortinas cor areia, um feixe recatado de luz pedia licença para lhe iluminar a silhueta e protocolar pequeno testemunho. Sobre a bancada, remexeu em pastas procurando dados entre os dedos, como quem colhia frutos de própria estação. Deletou pensamentos, buscou arquivos e o abraço dos amigos. Recordou-se de quando expelia arco-íris pelos poros, do sorriso fácil e que construía degraus de nuvens entre os versos. Que um dia amou e no outro também.

[Em pedra-ferro, cravada à beira do abismo, entre o temporal e o sol laranja, rezava a escritura:

é esta a minha terra,
o lado norte dos versos,
um país, uma palavra
toda a verdade.
terra branca
letra e poema de tantos segredos
dentro e fora de mim,
a semear braços, horizontes de anis
e outras moradas
onde escrevo,
aplaino rimas
e reinvento silêncios

De entre as pastas, selecionou apenas duas. Saúde e justiça são irmãs da mesma verdade e parceiras da mesma dor.

[Lenda, Poemas em Autoplágio ou apenas imaginação. Cravada à pedra-ferro, rezava a escritura:

o poema corre-me com a água
do canto
lava leve lembra
é este o som é este o sentido
porque as estrelas de dedos longos sempre tocam
as portas e os girassóis
que cabem no mundo:

é aqui, no verso,
que sou todos os homens
é aqui, no verso,
que me esqueço do tempo
é aqui, no verso,
que escavo o fogo.

eis-me o verso.


Com semblante seguro, passou pelo umbral carregando as pastas em baixo do braço esquerdo e mais duas gotas de certeza: homens de bem e poesia jamais falecem a causa da senhora realidade.

Foi quando o poeta tocou a primeira nota sequencial para seus versos e ela espirrava como a alma.

                                                        Em memória do poeta Wilson Caritta Lopes
(1964-2013)

Ana Cecília Romeu & Jorge Pimenta

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

dois poemas e algumas significações soltas


I. esconde-esconde

veia de espuma
pulsando orla e horizonte:

do tempo [ainda] nada
sabe,
diante de si
os oceanos são transparentes
e o tempo floresce na
palma da mão.


fotografia de jorge pimenta



II. escalada para entardeceres e catos em flor

já não tem nome
talvez nem mesmo idade
o gato que
rouba gemidos
enquanto partes para o
sul

sobe a rua
desafia a chuva
e, à porta,
estaca:

é outono
há folhas caídas e madeixas
a remexer fios coloridos
que um dia ergueram
telhados serenatas e suspiros.

do lado de dentro,
sabe o que encontrar:
luz apagada
lua pela metade
e uma derradeira certeza:

a morte é a ausência a habitar-lhe
a voz.


fotografia de jorge pimenta


sexta-feira, 4 de outubro de 2013

treze versos para curva e despiste


fotografia de jorge pimenta


demorei, um dia,
no teu olhar
álcool sangue e leite em
verso

hoje
sopro língua
e perícia
com batom pó de arroz e rímel
à espera que tudo corra
que tudo siga
que tudo faça:

a que velocidade é que os corpos se
despistam?