quinta-feira, 29 de maio de 2014

Telhados dele, telhados dela


Éramos perpétuos um no outro.

José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos


fotografia de jorge pimenta


São eles, os telhados, a lavar-lhes retinas ao anoitecer. Na obscuridade, mordem-lhes os dedos com figos e pão, enquanto cospem sílabas impronunciáveis com que alimentam cada escalada e precipício. Detêm-se nos corpos que, mão sobre a mão, devoram o tempo da fotografia, roída, gasta, a acariciar gavetas, por entre alfazema e roupa interior mal dobrada. É a idade que passa, que lhes verga os passos sobre as vértebras de todos os segredos, guardando uma derradeira certeza: mais tarde será tarde de mais e já nem o nome lhes caberá no beijo.


 

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Ode às mil e uma noites


fotografia de jorge pimenta


És tu a ode onde aprendo a superfície do mundo, tu, corpo a serpentear pelas árvores enquanto metáforas te escalam a pele em absoluta nudez. Num gesto invisível, libertas as mãos, mãos estreitas, profundas, mais largas do que o amor, que é ter medo de morrer por não saber morrer. Arriscas dois passos para diante, agitas a anca antes de um mover de olhos para a luz onde nem a cal do meu rosto te trava o ímpeto, breve e inesquecível, como esse soalho feito de papel onde insistes em arder a cada movimento desprendido.
Saio de mim para te saber ver e é na leveza da dança que espalhas alfabetos indecifráveis, pétalas de certezas e travessuras onde, com a ponta dos dedos, rabiscas linhas no vidro embaciado do fim do magma - tão singelas, quase pueris, sem esconderem um ligeiro rubor de face que emudece a cada acorde musical no sacrifício branco do silêncio.
E ali ficámos, tu, eu e as marcas de um deserto suspenso na voz: é verdade, ninguém vive pela memória, mas é lá que o mundo se faz papel e tinta, poema atrevido e hemisfério noturno do tempo a desvendar todos os caminhos - mesmo os do impossível.


 

sexta-feira, 16 de maio de 2014

os livros e os olhos: cântico para clamores e ventres raspados


fotografia de jorge pimenta


é lenta a revoada de páginas,
dois gomos de tangerina
e um leve fio a escorrer
pelos dedos,
aço, dizes tu;
nuvens, sei-o eu;
mas entre um e outro
toda a espessura das coisas
já gasta em saliva
com que percorres mundos de papel
que nos cabem,
sem míngua ou excesso,
em cada milímetro do corpo

são páginas
na gravidez do sal,
são palavras e espantos
de frio,
manhãs cor de anis,
numa desordem que toca
todas as coisas
por cima do tempo
por debaixo do vento,
nesse lugar secreto onde
tudo se ganha
e quase tudo se perde

a pouco e pouco,
chegado o derradeiro capítulo da viagem,
boca desatada sobre a exclamação máxima
do mundo:
são deuses de corpo nu
entoando a marcha interminável dos corpos
nessa felicidade de tinta
com que escrevemos os dias lentos
que julgávamos presos à engrenagem secreta
do fim da morte

mas agora é o instante,
a derradeira frase, e
já de olhos abertos e mãos sobre a paisagem,
o manto branco é tudo o que dissipas
e nada mais alcanças
senão a chuva frenética das sombras
aninhada sobre espelhos
num ocaso de flores vazias
infinitamente encharcadas,
sarcasticamente queimadas

e a história repete-se...


sexta-feira, 2 de maio de 2014

urban-idades


I. são assim as cidades

são assim as cidades
telhados do tamanho da idade
a erguer-se como pombos
com sílabas nas asas e
nomes que não envelhecem no peito.
são sons, ruído, vertigem e velocidade
mas dentro do teu olhar sonâmbulo
apenas a embriaguez de um segundo
a queimar-nos as mãos,
esse instante que passa mais lentamente
do que todo o tempo.


fotografia de jorge pimenta



II. Escalada e abismo

sei as escadas do corpo
em que a luz passa de boca em boca,
sei de escadas plenas
a ascender e a mergulhar
nos lugares recônditos do silêncio:
um nome, um rosto, um talvez recolhimento
na ressuscitação do pó.

sei de escadas...
lá onde tudo é outra coisa.


fotografia de jorge pimenta



III. requiem para uma cidade adormecida

já não me engana
a cidade
e o vício torcido na pele,
toda ela hábitos de palavras e
esconderijos de silêncio

às vezes atiro-lhe as mãos,
outras a minha loucura
e ela,

sempre insatisfeita,
abre a boca e engole-me na voragem
de serpente lasciva
a sibilar desejos
e algum do meu frio pela voz

no interior da idade,
a pedra oculta-se camaleónica
e, quando paro para serenar,
eis que toda ela se ilumina
mas ninguém respira já no interior das casas

já não me engana a cidade e
das estrelas nada mais espero do que palavras
de sentido lascado.


fotografia de jorge pimenta