quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

pedras da calçada da vida adentro [VIII]


I. o salto

e depois, o salto, o corpo suspenso e a trança queimada; e depois, a escrita nas cinzas com a ponta dos dedos.

fotografia de jorge pimenta


II. refração

alimento-me de estrelas, de nuvens e do balanço inclinado da tua voz para saber presentes; tudo o mais é perder.

fotografia de jorge pimenta


III. monólogo de mãos para certezas improváveis

haverá mãos a desatar nuvens nos cabelos e um corpo dentro do corpo; haverá mãos, sim, num dia mais cedo do que o tempo.

fotografia de jorge pimenta


IV. pena capital


tocas os dias que faltam com lágrimas futuras: a noite pode até doer mas o tempo há muito deixou de existir.

fotografia de jorge pimenta


sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

ode ao livro e a cada um dos seus silêncios


Sophia, com as suas palavras de terra e de mar, alimenta vidas através do silêncio da escrita.

[dedicatória encontrada no livro Histórias da Terra e do Mar, de Sophia de Mello Breyner Andresen, que repousa numa estante da minha biblioteca]


Boekhandel Selexyz Dominicanen: fotografia de jorge pimenta


é ele, o livro
sonho a vestir viagens e
aventuras de areia com mãos frias
despido de mapas ou tesouros,
apenas caminho e pés
a queimar plantas e bolhas
em cada mil vagas e marinheiros

é ele, o livro,
cheiro, odor, castigo,
indiferente à loucura e à passagem dos anos
bicicleta com luz a trepar os olhos
e uns pingos de sangue no joelho
daquela encosta onde soprei estrelas
e nuvens
no balanço inclinado da tua voz

é ele, o livro,
estação do ano preferida
a rugir prados e açucenas
com que queimavas a pele
e rufavas delírios
nesse cortejo de ânsias e
bem-quereres

é ele, o livro,
o espaço que o tempo habitou
num mundo que começa e acaba
nas crinas das linhas, nos contornos das letras,
livro-esboço de infância sem relógio
em cada som murmurado
em cada palavra repetida
nalguns sentidos roubados
bem ali ao lado da cadeia infinita de silêncios
e de algumas mortes escorridas
na tinta.


Boekhandel Selexyz Dominicanen: fotografia de jorge pimenta

Boekhandel Selexyz Dominicanen: fotografia de jorge pimenta

Boekhandel Selexyz Dominicanen: fotografia de jorge pimenta

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Boekhandel Selexyz Dominicanen: fotografia de jorge pimenta

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Boekhandel Selexyz Dominicanen

Há lugares assim. Depois do fascínio da Livraria Lello, no Porto, um daqueles lugares que parecem suspensos no mundo e, para o meu amigo Roberto Lima, a mais bela livraria do mundo, atrevi-me a um salto à irresistível Boekhandel Selexyz Dominicanen, em Maastricht - Holanda. Considerada como a mais bonita do mundo, esta livraria é muito mais do que um lugar onde se compra livros; é um espaço de culto, montado, em 2007, numa abadia dominicana do século XII que até há bem pouco tempo se encontrava abandonada, tendo, até então, servido como depósito de bicicletas, o mais comum meio de transporte naquelas latitudes. O contraste do ambiente austero e da arquitetura gótica (onde até os tetos preservam os frescos) com a sofisticação da decoração moderna e a intemporalidade do livro a vestir paredes e estantes, tornam-na num espaço de reverência que convida ao intimismo e à introspeção. Desses que o mundo nos oferece e que, como a Lello, no Porto, ou El Ateneo, em Buenos Aires, temos a obrigação de eternizar - por nos eternizarmos com eles. Afinal, é ele, o livro...

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

canção para catre, leito e cercanias



Afastámo-nos para nos vermos
José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos



fotografia de jorge pimenta


um rumor rompe a liberdade
do rosto:
a palavra mínima injeta veneno no coração
e a carne, essa,
mãos soltas e algibeiras vazias,
reflui para dentro da raiz.

regressa às esquinas,
lábio húmido de álcool,
um cigarro a povoar-lhe memórias e
pensamentos
e logo ali
ao lado
quente e azul, uma chávena de
saudade estende-se para além do
perímetro da solidão.

já não sabe o que é inspiração mas ainda acredita
no tempo
que deixou de temer como aos poros
do seu vestido,
porque aprendeu:

é preciso ser mais do que
verso de urgências,
grito ou infinito,
hoje é preciso ser
catre e leito da carne raspada
onde aconchegar silêncios e cercanias.


sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

exercício para verbo cansado e apatia


A felicidade é ser feliz e perder a memória. (tradução livre)
Ingmar Bergman



fotografia de jorge pimenta


és tu que os ventos percorrem para chegarem
às palavras enluaradas
e eu,
num equívoco de madrugadas,
espero por ti
entre dois espaços e nenhum,
hoje
enquanto as ruas perdem a gente e os lugares,
agora
que todas as palavras adormecem
no fundo raso de um poema.

és tu quem chamo,
um nome a iludir as horas
porque o sangue adormece nas estradas
do corpo
e os espelhos crescem para os objetos

mas quando, por fim,
estendo os braços para o fim da tarde,
chegas num navio invisível,
sentimento rachado nos corpos
e confissões a pingar tempestades e impossíveis:

és tu
já não deidade de lábios
mas de sombras
a atiçar o mistério de pétalas e distâncias
de que regressas
não sei quando
não sei onde;
apenas depois do tempo que se
não fez.


sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

ode ao tempo, às linhas e a tudo o que é finito


O prazer, no entanto, não é eterno. Dura
o espaço do amor.

Nuno Júdice, in Psique raptada pelos zéfiros


fotografia de jorge pimenta


chegam devagar
as linhas,
segmentos deitados sobre
o movimento
a contar dias arrancados
ao corpo
e a cada precipício suspenso
na idade

são linhas escuras
sombras rugas lepra
a tentar a beleza e a língua
que não sabes quando se desligará
do tempo
por isso tremes
por isso o sangue freme
e uma cama explode
no viço seco de uma morte
anunciada,
sem medo, segura
no frescor rápido de um
golpe
que trepa pelo ar
já quase só cansaço da tua boca

fechas os olhos e elas,
as linhas,
sempre as linhas,
galopam por ti acima
lambem-te o umbigo,
espreitam-te as entranhas
e atiram-se para o teto do
mundo,
descalças,
apenas saliva e gemido
por viver todo o corpo de um só golpe

e depois que o frenesim adormece
no silêncio,
voltas-te
e és apenas coágulo de linha junto às mãos
mãos abertas para nada
porque nada te pertence:

se me prometes a vida toda
por que apenas me concedes
uma parte?